Este espaço é uma homenagem ao grande sociólogo e historiador Gilberto Freire criador da obra homônima. Seu objetivo é a divulgação de latinidades, africanismos e gentilidades e o desvelamento desse povo apaixonante e apaixonado denominado latino americano e suas origens.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Motim a Bordo - O Tráfico de Escravos


Os escravos ao serem transportados para as Américas, algumas vezes, pelas condições terríveis da travessia, amotinavam-se contra seus captores. Não era fácil tal tipo de revolta, as guarnições dos navios, sempre alertas, ao menor indício de agitação puniam drasticamente os cativos. Mas apesar de todos os cuidados tomados pelos traficantes, muitas vezes a carga viva em desespero dos navios negreiros se insurgia. Os sofrimentos por que passavam nas naus eram tão horrendos que preferiam a morte de um combate duvidoso, ou o suicídio puro e simples do que permanecerem nas condições subumanas a que estavam obrigados.

Podiam acomodar de quatrocentos a quinhentos nativos em uma pequena nau, como porcos num chiqueiro, a ponto de o próprio cheiro de suor e excrementos matar muitos deles. Os porões da coberta eram aferrolhados e somente umas poucas frestas existiam para o ar penetrar. O racionamento de alimentação durante a viagem, quase sempre em péssimas condições de conservação, garantia o lucro final da carregação para o capitão. A ração de água, quase sempre morna e contaminada, era pouquíssima e levava às pestilências, e depois de alguns dias de viagem obrigava a tripulação deitar corpos sem vida de africanos ao mar. Só as mulheres e os moleques que permaneciam na coberta era a melhor porção que conseguia chegar vivos ao destino.




Quando o capitão permitia, para garantir seus interesses e assim evitar grande mortandade, mandavam lavar a coberta e com esponjas correr o interior dela com vinagre. Todos os dias por pouco tempo, e por poucas horas mandavam vir em ferros para cima da coberta parte da escravatura embarcada para que possam tomar um ar,  conforme informam as testemunhas da época, tomando o cuidado de manter a maioria nos porões para evitar um levante.

Podemos imaginar, pelas condições que eram expostos os embarcados, o que significava uma revolta de escravos a bordo, Os negros enfurecidos pelo desespero, quando conseguiam dominar a tripulação do negreiro executavam verdadeiras matanças. Por isso, os castigos infligidos aos negros que se revoltavam ou tentavam amotinar-se durante a travessia eram terríveis. Relatos da época e testemunhos são inúmeros.




Do livro de bordo de um navio negreiro L’African, em 1738, extrai-se essa passagem: “Sábado, 29 de dezembro, Amarramos ontem os negros mais culpados, isto é, os negros autores da revolta, pelos quatro membros e deitados de bruços em cima da ponte, fizemo-lhes escarificações nas nádegas para que sentissem melhor suas faltas. Depois de ter posto as nádegas em sangue pelos açoites e escarificações, pusemos em cima pólvora, suco de limão, salmoura e pimenta, tudo pilado, juntamente com outra droga posta pelo cirurgião; e atiramo-lhes às nádegas para evitar que houvesse gangrena...”

Por uma simples suspeita de revolta em outro navio, conta o historiador, um capitão condenou dois negros à morte, em 1724. Uma negra escrava foi suspensa ao mastro e flagelada. Depois com tesouras, arrancaram-lhe cem filetes de carne até que os ossos aparecessem; o outro condenado foi estrangulado e arrancaram-lhe o fígado, o coração e o intestino. Seu corpo foi cortado em pedaços que os outros escravos foram obrigados a provar.

Outro relato, que dá uma idéia sobre as condições desses carregamentos humanos,  foi o do tradutor e oficial capelão da fragata Cleópatra, o inglês, Mr. Hill, embarcado no navio negreiro "Progresso", apresado pelas fragatas inglesas quando navegava ainda em mar calmo: "O navio era impelido por uma leve brisa que variava de rumo. Os negros dormiam ou estavam estendidos no convés. De tal maneira se enlaçavam uns com os outros em um pequeno espaço, que, à luz incerta do luar, mais pareciam um montão confuso de braços e pernas, do que corpos humanos. Pela 1 hora depois da meia-noite começou o céu a cobrir-se de nuvens, e o horizonte escurecia na direção do vento. Um aguaceiro corria sobre nós; caíram algumas gôtas d'agua e de repente principiou uma cena, cujos horrores não é possível descrever. Obrigados a obedecer imediatamente à voz de ferrar o pano, os marinheiros embarcados pelos negros estendidos no convés, não puderam manobrar como convinha. 'Façam descer os negros'. Gritou o capitão, e assim se fez. Mas o tempo estava pesado e quente e esses 400 infelizes, amontoados em um espaço de 12 toesas de longo e 7 de largo, com três pés e meio apenas de alto, em breve começaram a forcejar para voltar ao convés e respirar o ar livre. Repelidos, fizeram segunda tentativa. Foi preciso fechar-lhes as escotilhas de ré, e colocar uma espécie de grade de madeira na proa. Então os negros começaram a amontoar-se junto desta escotilha por ser a única abertura que deixava comunicar o ar. Sufocavam, e, estimulados talvez por algum terror pânico, entraram a juntar-se de tal forma, que impediram completamente a ventilação. Por toda a parte onde pensavam encontrar uma passagem, faziam os maiores esforços para sair; alguns saíram efetivamente por espaços que tinham cerca de 14 polegadas de longo e 6 de largo...No dia 13 de abril de 1843, quinta-feira santa, acharam-se no porão 54 cadáveres que foram lançados ao mar. Alguns desses infelizes tinham perecido de moléstia; porém muitos dos cadáveres estavam machucados e cobertos de sangue, Antonio, um espanhol de bordo da presa, contou-me que foram vistos alguns já prestes a morrer, estrangulando-se ou apertando a garganta uns dos outros. Um por tal modo foi comprimido que as entranhas lhe saíram para fora do corpo. A maior parte deles tinham sido calcado aos pés no delírio e sofreguidão com que buscavam ar que respirasse. Horroroso espetáculo era ver arrojado ao mar, um após outro, esses corpos torcidos, inteiriçados, manchados de sangue e de excremento!..." (Da obra:"Cinquenta Dias a bordo de um navio negreiro" de autoria do capelão da fragata Cleópatra)

Com esses relatos preliminares podemos ter uma idéia em que condições esses seres humanos eram trazidos de sua terra nativa para lucro de comerciantes e satisfação de mão de obra cativa para os senhores de escravos do Novo Mundo.

Pois bem, retornando à narrativa, em 1823 os escravos de um tumbeiro que se dirigia provavemente às costas da Bahia amotinaram-se e assassinaram vários tripulantes da embarcação. Vinha a nau com uma carregação de negros Macuas, quando, inesperadamente, estourou o motim, sendo os tripulantes alguns jogados pela amurada e espancados com achas de lenha. Certamente foi sufocado o motim, pois de outra forma não se explica o fato de haver chegado o navio negreiro à Salvador.


O motim foi inteiramente acidental e não teve prévia organização, com certeza fruto das péssimas condições do transporte e algum outro motivo fortuito durante a longa travessia. Tiveram a oportunidade do levante, coisa da maior dificuldade para a maioria dos cativos em semelhantes condições, quando eram levados para o Novo Mundo, pela experiência dos captores e sua vigilância constante, como já vimos.

Apesar do improviso, segundo os autos de acusação, havia um líder que se destacou, encorajou os companheiros e dirigiu a rebelião. Foi o preto ladino José Toto ou José Pato. O escravo Niquirita afirmou em juízo que o levante tinha sido "insinuado aos negros Macuas pelo preto ladino José Toto", depoimento que coincide com o de outro ladino implicado, o escravo Lauriano, que também afirmou nos autos: "quem aconselhara os negros novos para se levantarem fora o preto ladino de nome José Pato.



Ainda pelos depoimentos apurados, as armas utilizadas foram achas de lenha e outros objetos encontrados a bordo. Na matança aos brancos tripulantes se destacaram os pretos novos Macu, Mamatundu e Macutandu.

Esse pretos novos, todos Macua recém chegados do continente africano, acreditavam que, "se assim não fizessem, os brancos os comeriam na sua terra".

A idéia em sí não é de todo implausível, do ponto de vista dos cativos, pelas péssimas condições em que se encontravam era normal imaginar que seriam devorados após a travessia. O que não conseguiam imaginar era que iriam sofrer um outro tipo de devoramento. Suas pernas e seus braços iriam ser sacrificados ao deus da ganância dos brancos. Um negro durava em média 7 anos nas minas e 15 anos na lavoura, seus destinos estavam selados desde o primeiro dia do embarque.

Após o julgamento do motim as setenças foram proferidas. Poucos registros restaram para sabermos o destino dos acusados. Devem, porém, como era praxe nesses casos terem sido enforcados, pelo menos os líderes, já que a mão de obra importada era escassa. Por crimes menores, costumava a justiça na época condenar os cativos a 500, 600  ou até mais açoites. Nos autos sobre rebeliões das senzalas, essas penas eram comuns, pela simples presunção de culpa do indivíduo  na sua participação ou em apoio aos movimentos de libertação.


      

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